Subir na vida a pulso

Esta semana Cavaco Silva disse que veio debaixo e chegou onde nunca pensaram e que por isso a educação como elevador social funciona. Bastava chapar aqui os dados nacionais, europeus e mundiais sobre desemprego jovem que o argumento cairia logo devido aos seus frágeis pés de barro.

Mas eu quero ir mais além, Cavaco Silva saiu muito caro ao país, pois cristalizou um modelo de desenvolvimento que ainda hoje temos, sendo em meu entender a herança mais pesada a "revolução cultural" que operou, foram usado os métodos tradicionais da grande propaganda clássica: "o filho do gasolineiro que se fez primeiro-ministro e presidente da República", "com estudo e trabalho tudo se consegue", criando nos anos 90 o conceito de "Capitalismo popular" em que qualquer um poderia participar na vida de uma empresa e enriquecer, nascia assim "A Igreja Universal do Reino do empreendedorismo" que em nome do "Carro, Casa, Carreira" batizou os Portugueses como seus fiéis.

Assim no Consulado Cavaquista o país foi aculturado pela linguagem empresarial, aquilo a que ironicamente podemos chamar de "grande salto em frente", acabavam os Trabalhadores surgiram os Colaboradores/Recursos Humanos , "sair da zona de conforto" como solução para todo e qualquer problema laboral ou da vida, tudo o que fosse betão, Centros Comerciais, Auto-estradas era visto como progresso social, e quem criticava , era apelidado de retrógrado e não querer o desenvolvimento do país. Começava ainda a guettização das periferias urbanas e o triunfo do individualismo como ideologia dominante, coadjuvado naturalmente por alterações legislativas e revisões Constitucionais, que ajudavam a cristalizar o modelo.

Modelo esse que era fortemente repressivo quando existiam manifestações, todos lembramos as cargas policiais de má-memória na ponte 25 de Abril que deixaram uma pessoa numa cadeira de rodas por lutar pelos seus Direitos, enquanto Dias Loureiro lavava as mãos como Pilatos e saía da sua zona de conforto de Ministro para em breve demonstrar o seu know-how empreendedor na Sociedade Lusa de Negócios e no BPN que tantas alegrias deram aos contribuintes portugueses.
Portanto estava tudo a correr bem e em marcha, autoridade e bastões para os pobres, e privilégios para o setor empresarial, que deixava de ter patrões e tinha agora CEOs, muito mais trendys e capazes de nos levar ao Olimpo da competitividade.

Mais tarde a linha prosseguida e de que foram herdeiros com pequenas nuances os governos seguintes, o País foi intervencionado pela Troika, tendo o governo da altura sacado dos galões, mostrando-se um excelente acólito do seu patriarca - começámos então a assistir a missas diárias de ode ao empreendedorismo, algumas inclusivamente televisionadas. O próprio chefe do Governo apoiado numa imprensa económica que no geral professa o mesmo credo, começou a sugerir aos portugueses, em particular a professores e enfermeiros para emigrarem e saírem da sua zona de conforto, mostrando o seu dogma religioso e como era um péssimo gestor, pois parece-me bastante "ineficiente" formar quadros com um custo na educação considerável para outros beneficiarem dos seus conhecimentos apenas com o custo de oportunidade, não me parece que racionalmente faça muito sentido.

Então nas televisões começámos a assistir à propaganda diária de que vivemos acima das nossas possibilidades, e que o problema era sermos os preguiçosos do sul, isto normalmente veiculado pelos CEOs do psi-20, mas eles tinham uma solução brilhante: o empreendedorismo!
Como funcionava? tínhamos um desemprego real de 20% aproximadamente, então vamos para isto dar uma solução que chega a 1 % da população, parece brilhante e racional, e vamos dar exemplos individuais de "resiliência" e "abnegação" de pessoas que "vieram do nada" e hoje são
"homens de sucesso". De seguida o Estado foi capturado por esta ideologia, e o IEFP começou a contratar empresas cujo produto era serem speakers, que vinham ensinar os preguiçosos desempregados que se alguém chora têm de vender lenços e que todos podem lá chegar: é uma questão de esforço, aleluia!
Tudo isto patrocinado pela UE que disponibilizava fundos para não deixar morrer estas empresas que viviam de falar nos auditórios da Universidades, tinham palco na RTP, ou seja faziam o empreendedorismo "à custa do Estado" (interessante coerência?! Pois os dogmas religiosos têm destas coisas).

E então a saga continuava, onde se destacava o acólito Miguel Gonçalves, que tinha um grande tempo de antena algures em 2012 na imprensa, dando um jeito ao governo da altura, reduzindo os problemas económicos e laborais do país ao fato de uns não passarem as suas camisas, e tentava transformar a Universidade numa linha de montagem de mão de obra apta à precariedade, amordaçada pela tirania do mercado, onde só se deve estudar o que o mercado precisa, pois temos de nos vender e é para isso que ali estamos, para a crença cega tudo isto é natural, é assim, e que aceitando isto lá vamos continuando e rindo. Tudo isto agravado com a crescente literatura de auto-ajuda e com a ideia de que estágios como o “Estímulo 2012” que pagava a 500 euros às/aos arquitetas/os que aqui são designadas/os de empreendedoras/es.

Em suma o Estado promove um interessante negócio para os speakers de empresas que vendem o empreendedorismo, e o capitalismo popular é a solução apresentada para a geração que pela primeira vez na história pode vir a viver pior que a anterior e a qual já foi avisada pelos senadores que no máximo terá metade da reforma no final da vida.

É preciso cortar com esta herança tão presente hoje em dia, este misto de individualismo selvagem, conjugado com a austeridade perpétua herdada da troika, contra a qual lutaremos diariamente.

Luís Martinho

Jurista, mestre em Ciências Jurídico Financeiras